Artigo publicado pelo Fundação Getúlio Vargas - FGV, pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da EAESP.
*Clovis Neves
Podemos tomar como base a prática social (o que governo e sociedade fizeram) em torno da fome para analisar a retórica utilizada. Para isso, consideramos que a fala (discursos, projetos, notícias) refletem as posições ideológicas sobre o tema. Uma posição ideológica tem sido a de permitir (por atos ou omissões) que a fome persista. A outra posição seria de resistência, ou seja, de impedir que a fome persista entre os brasileiros.
Assim sendo, analisaremos as palavras e expressões utilizadas pelo governo e por setores da sociedade para falar da fome.
Inicialmente, é preciso atentar para a noção de "fome".
Se, anteriormente, essa palavra podia ser identificada como simples falta de alimentação, como sensação de fome, ou seja, remeter apenas a aspectos biológicos e fisiológicos, após os estudos de Geografia da Fome, tal noção mudou completamente.
Antes, considerava-se que a fome era um mal passageiro (epidemia), quando essa atingia grupos humanos inteiros. Mas depois, passa-se a ver o seu caráter permanente da fome (endemia), pois ela afeta grandes contingentes populacionais de forma contínua. Mas o que importa notar, no caso, é que essa fome permanente estava lá, presente, desde tempos remotos. E que foi justamente quando se passou a vê-la, a partir de vários enfoques, que nasceu o novo conceito de fome, agora vista com as abordagens da medicina, da nutrição, da geografia, da política, da economia, da sociologia e do direito.
E é justamente esse novo conceito de fome que vai servir de base para as políticas públicas internacionais e nacionais, em torno do problema da fome.
Não apenas pelos conhecimentos e crenças dos discursos sobre a fome, mas pelo próprio modo de representá-la, temos a veiculação de visões de mundo. Essas visões de mundo constituem paradigmas e proposições gerais. Isso porque a linguagem (o que se diz, como se conceituam as coisas) é afetada pelas circunstâncias sociais.
O discurso (as falas, as imagens) expressa os sentidos e os valores de uma instituição. Podemos observar que há certas palavras e expressões que podem ser faladas e escritas livremente. Outras não. Por extensão, há coisas permitidas e coisas proibidas.
Tomando-se o vocabulário, por exemplo, é possível ver que as palavras enfatizam preocupações e projetam valores nas pessoas, nos grupos, na sociedade, nos sujeitos que interagem.
Usei como fonte de pesquisa, o livro de Jr. Bonfim, Pesquisa Sobre a Fome, para mostrar que, ao longo da história brasileira, é possível perceber, pelos nomes dos movimentos populares ou dos órgãos constituídos para lidar com o problema, como a questão vem sendo encarada ao longo do tempo, no âmbito da prática social.
Tomemos os seguintes nomes de movimentos, órgãos e eventos:
(1) Movimento Contra a Carestia (1914)
(2) Comitês de Combate à Fome (1918)
(3) Marcha da Fome (1930)
(4) Serviço Técnico de Alimentação Social (1943)
(5) Comissão Nacional de Alimentação (1946)
(6) Lei do Alimento para a Paz (1954)
(7) Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (1972)
(8) Campanha Nacional da Merenda Escolar (1964)
(9) Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (1993)
(10) Plano de Combate à Fome e à Miséria (1993/94)
(11) Conselho Nacional de Segurança Alimentar (1993)
(12) Comunidade Solidária (1995)
(13) Campanha da Fome (1993/95)
Cada um desses nomes expressa uma visão de mundo sobre o problema. E o modo como o nome representa a ação diz muito sobre o contexto, sobre os agentes e sobre os desdobramentos a respeito da questão.
Diante da palavra "fome" (entendida como fome permanente, que atinge sistematicamente grupos sociais), há duas atitudes possíveis: a vergonha e a indignação. A vergonha pode levar a ocultar o problema, ou minimizá-lo; a indignação pode levar a uma busca para resolvê-lo. Mas é difícil ficar indiferente à palavra fome. Assim, nos casos (2) Comitês de Combate à Fome; (3) Marcha da Fome; (9) Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida; e (10) Plano de Combate à Fome e à Miséria, admite-se a existência da fome, pela presença explícita da palavra no nome do órgão ou evento; ou seja, permite uma tomada de posição por parte dos membros da sociedade, admitindo-se que não é possível resolver o problema da pobreza sem a participação dos pobres.
Compare-se com os nomes em (4) Serviço Técnico de Alimentação Social (1943); (5) Comissão Nacional de Alimentação; e (7) Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, em que aparece a palavra "alimentação". Teria essa palavra o mesmo conteúdo mobilizador que a palavra "fome"? No meu entender, não; pelo contrário, seu conteúdo é desmobilizador. Não por acaso, são nomes ligados ao Estado.
No caso de (6) Lei do Alimento para a Paz, observa-se o mesmo sentido, sendo que "alimentos para a paz" assume um pressuposto muito mais forte, uma vez que se pode ver a carência de alimentos como um motivo para uma não-paz.
Em (2) Comitês de Combate à Fome e (10) Plano de Combate à Fome e à Miséria temos o substantivo "fome" ao qual são associados a preposição "contra" e o substantivo "combate", ambos indicando uma ação; nesses nomes encontramos um movimento mobilizador, mesmo que no primeiro haja o predomínio da sociedade civil (comitês) e no segundo a marca do Estado (plano). Mas compare-se com (11) Conselho Nacional de Segurança Alimentar e (12) Comunidade Solidária, em que órgãos para lidar com a mesma questão trazem outros nomes. Haveria nos dois últimos casos um conteúdo mobilizador? Provavelmente, não.
Mesmo que "segurança alimentar" seja um conceito muito mais abrangente; e que "solidariedade" seja um sentimento humano muito nobre. No meu entender, ambos são desmobilizadores e, novamente, retiram o papel da sociedade para a resolução do problema.
Enfim, este pequeno exercício de interpretação do discurso sobre a fome tem por objetivo apenas demonstrar o quanto a linguagem é constitutiva de valores sociais, o quanto ela reproduz valores e o quanto tem potencial para criar ou manter valores, segundo as 23 escolhas dos atores sociais para lidar com a linguagem. Um estudo dos discursos dos textos teóricos e dos documentos oficiais a respeito revelaria, igualmente, como as escolhas dizem respeito ao modo de encarar (ou omitir) o problema. Tomando-se o termo "campanha" de (8) Campanha Nacional de Merenda Escolar e de (13) Campanha da Fome, teríamos origens diferentes - os militares no primeiro e a sociedade civil organizada no segundo - com perspectivas ideológicas diferentes.
De direita, assistencialista, e de esquerda, mobilizadora. Mas, nos dois casos, a percepção do fenômeno da fome como passageiro, pois o instrumento escolhido para combatê-lo seria uma "campanha", algo passageiro, pela sua natureza.
Um estudo sobre o uso da linguagem em um tema como esse tem o papel, entre outras coisas, de desvelar o caráter ideológico subjacente nos discursos - e não seria ideológico se não estivesse "escondido" em um discurso do senso comum.
Está demonstrado que o modo como representamos o mundo é também o modo como vemos o mundo e como projetamos a ação sobre os eventos.
*Clovis Neves é Professor, Filósofo, Psicopedagogo, Pós-graduado em Saúde Mental e Especialista em TDAH - pela Universidade Católica de Brasília - DF.