Psicopedagogia - Saúde Mental

Psicopedagogo CLOVIS NEVES

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Fome: Uma Leitura

04/12/2004 11:00

Artigo publicado pelo Fundação Getúlio Vargas - FGV, pelo Centro de Estudos em Sustentabilidade da EAESP.

*Clovis Neves

Podemos tomar como base a prática social (o que governo e sociedade fizeram) em torno da fome para analisar a retórica utilizada.  Para isso, consideramos que a fala (discursos, projetos, notícias) refletem as posições ideológicas sobre o tema.  Uma posição ideológica tem sido a de permitir (por atos ou omissões) que a fome persista.  A outra posição seria de resistência, ou seja, de impedir que a fome persista entre os brasileiros.

Assim sendo, analisaremos as palavras e expressões utilizadas pelo governo e por setores da sociedade para falar da fome.

Inicialmente, é preciso atentar para a noção de "fome".

Se, anteriormente, essa palavra podia ser identificada como simples falta de alimentação, como sensação de fome, ou seja, remeter apenas a aspectos biológicos e fisiológicos, após os estudos de Geografia da Fome, tal noção mudou completamente.

Antes, considerava-se que a fome era um mal passageiro (epidemia), quando essa atingia grupos humanos inteiros.  Mas depois, passa-se a ver o seu caráter permanente da fome (endemia), pois ela afeta grandes contingentes populacionais de forma contínua.  Mas o que importa notar, no caso, é que essa fome permanente estava lá, presente, desde tempos remotos.  E que foi justamente quando se passou a vê-la, a partir de vários enfoques, que nasceu o novo conceito de fome, agora vista com as abordagens da medicina, da nutrição, da geografia, da política, da economia, da sociologia e do direito.

E é justamente esse novo conceito de fome que vai servir de base para as políticas públicas internacionais e nacionais, em torno do problema da fome.

Não apenas pelos conhecimentos e crenças dos discursos sobre a fome, mas pelo próprio modo de representá-la, temos a veiculação de visões de mundo.  Essas visões de mundo constituem paradigmas e proposições gerais.  Isso porque a linguagem (o que se diz, como se conceituam as coisas) é afetada pelas circunstâncias sociais.

O discurso (as falas, as imagens) expressa os sentidos e os valores de uma instituição.  Podemos observar que há certas palavras e expressões que podem ser faladas e escritas livremente.  Outras não.  Por extensão, há coisas permitidas e coisas proibidas.

Tomando-se o vocabulário, por exemplo, é possível ver que as palavras enfatizam preocupações e projetam valores nas pessoas, nos grupos, na sociedade, nos sujeitos que interagem.

Usei como fonte de pesquisa, o livro de Jr.  Bonfim, Pesquisa Sobre a Fome, para mostrar que, ao longo da história brasileira, é possível perceber, pelos nomes dos movimentos populares ou dos órgãos constituídos para lidar com o problema, como a questão vem sendo encarada ao longo do tempo, no âmbito da prática social.

Tomemos os seguintes nomes de movimentos, órgãos e eventos:

(1) Movimento Contra a Carestia (1914)

(2) Comitês de Combate à Fome (1918)

(3) Marcha da Fome (1930)

(4) Serviço Técnico de Alimentação Social (1943)

(5) Comissão Nacional de Alimentação (1946)

(6) Lei do Alimento para a Paz (1954)

(7) Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (1972)

(8) Campanha Nacional da Merenda Escolar (1964)

(9) Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida (1993)

(10) Plano de Combate à Fome e à Miséria (1993/94)

(11) Conselho Nacional de Segurança Alimentar (1993)

(12) Comunidade Solidária (1995)

(13) Campanha da Fome (1993/95)

Cada um desses nomes expressa uma visão de mundo sobre o problema.  E o modo como o nome representa a ação diz muito sobre o contexto, sobre os agentes e sobre os desdobramentos a respeito da questão.

Diante da palavra "fome" (entendida como fome permanente, que atinge sistematicamente grupos sociais), há duas atitudes possíveis: a vergonha e a indignação.  A vergonha pode levar a ocultar o problema, ou minimizá-lo; a indignação pode levar a uma busca para resolvê-lo.  Mas é difícil ficar indiferente à palavra fome.  Assim, nos casos (2) Comitês de Combate à Fome; (3) Marcha da Fome; (9) Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e pela Vida; e (10) Plano de Combate à Fome e à Miséria, admite-se a existência da fome, pela presença explícita da palavra no nome do órgão ou evento; ou seja, permite uma tomada de posição por parte dos membros da sociedade, admitindo-se que não é possível resolver o problema da pobreza sem a participação dos pobres.

Compare-se com os nomes em (4) Serviço Técnico de Alimentação Social (1943); (5) Comissão Nacional de Alimentação; e (7) Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição, em que aparece a palavra "alimentação".  Teria essa palavra o mesmo conteúdo mobilizador que a palavra "fome"?  No meu entender, não; pelo contrário, seu conteúdo é desmobilizador.  Não por acaso, são nomes ligados ao Estado.

No caso de (6) Lei do Alimento para a Paz, observa-se o mesmo sentido, sendo que "alimentos para a paz" assume um pressuposto muito mais forte, uma vez que se pode ver a carência de alimentos como um motivo para uma não-paz.

Em (2) Comitês de Combate à Fome e (10) Plano de Combate à Fome e à Miséria temos o substantivo "fome" ao qual são associados a preposição "contra" e o substantivo "combate", ambos indicando uma ação; nesses nomes encontramos um movimento mobilizador, mesmo que no primeiro haja o predomínio da sociedade civil (comitês) e no segundo a marca do Estado (plano).  Mas compare-se com (11) Conselho Nacional de Segurança Alimentar e (12) Comunidade Solidária, em que órgãos para lidar com a mesma questão trazem outros nomes.  Haveria nos dois últimos casos um conteúdo mobilizador?  Provavelmente, não.

Mesmo que "segurança alimentar" seja um conceito muito mais abrangente; e que "solidariedade" seja um sentimento humano muito nobre.  No meu entender, ambos são desmobilizadores e, novamente, retiram o papel da sociedade para a resolução do problema.

Enfim, este pequeno exercício de interpretação do discurso sobre a fome tem por objetivo apenas demonstrar o quanto a linguagem é constitutiva de valores sociais, o quanto ela reproduz valores e o quanto tem potencial para criar ou manter valores, segundo as 23 escolhas dos atores sociais para lidar com a linguagem.  Um estudo dos discursos dos textos teóricos e dos documentos oficiais a respeito revelaria, igualmente, como as escolhas dizem respeito ao modo de encarar (ou omitir) o problema.  Tomando-se o termo "campanha" de (8) Campanha Nacional de Merenda Escolar e de (13) Campanha da Fome, teríamos origens diferentes - os militares no primeiro e a sociedade civil organizada no segundo - com perspectivas ideológicas diferentes.

De direita, assistencialista, e de esquerda, mobilizadora.  Mas, nos dois casos, a percepção do fenômeno da fome como passageiro, pois o instrumento escolhido para combatê-lo seria uma "campanha", algo passageiro, pela sua natureza.

Um estudo sobre o uso da linguagem em um tema como esse tem o papel, entre outras coisas, de desvelar o caráter ideológico subjacente nos discursos - e não seria ideológico se não estivesse "escondido" em um discurso do senso comum.

Está demonstrado que o modo como representamos o mundo é também o modo como vemos o mundo e como projetamos a ação sobre os eventos.

*Clovis Neves é Professor, Filósofo, Psicopedagogo, Pós-graduado em Saúde Mental e Especialista em TDAH - pela Universidade Católica de Brasília - DF.

Artigo publicado em: www.gvces.com.br/index.php?r=noticias/view&id=12736&0%5Bidioma_id%5D=&0%5Bidnoticia%5D=&0%5Bidusuario%5D=&0%5Btitulo%5D=&0%5Btexto%5D=&0%5Bdatacad%5D=&0%5Bdatapub%5D=&0%5Bpublicado%5D=1&0%5Bfonte%5D=&0%5Bautor%5D=&0%5Bidfonte%5D=&0%5Bidtipo%5D=&0%5Bidioma%5D=&0%5Burl_referencia%5D=&0%5Bdestaque%5D=